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A Flup nasceu sob o signo do impossível. Até mesmo os amigos e parceiros mais próximos catalogaram como quixotesco o nosso desejo de organizar uma festa literária internacional dentro de uma favela, ainda que em 2012, ano de nossa primeira edição, todas as políticas públicas fossem apresentadas com o selo de inclusivas.

 

– Jamais captarão – alertavam-nos.

Também cortejou o delírio a ideia de terminar o conturbado ano de 2013 em Vigário Geral, onde fuzil não é uma rima pobre para Brasil.
 

No ano seguinte, fizemos uma batalha de poesia com slammers de 16 países numa Mangueira que parecia não ter se recuperado de uma guerra com episódios dantescos, como a exposição de corpos decapitados na porta de uma escola pública de ensino fundamental.

Em 2015, voltamos a navegar o mar do estranhamento quando sugerimos aos autores hospedá-los na surpreendente rede de hotéis e pousadas da Babilônia. Não seria diferente agora, em que chegamos à Cidade de Deus com o desejo de fazer as misturas mais heterodoxas no bolo com que estamos celebrando os 50 anos da mais
emblemática das comunidades populares do Rio de Janeiro, a começar pelo nome.


O primeiro ingrediente dessa alquimia do improvável é a homenagem a Caio Fernando Abreu, escritor gaúcho que em tempos igualmente sombrios mapeou as periferias existenciais nos textos que produziu compulsivamente nas mais diversas plataformas literárias, até morrer de AIDS há exatos 20 anos.

Um exemplo da programação preenche as lacunas entre as periferias existenciais, territoriais e narrativas – a mesa Dando uma pinta na produção, que reúne Marcelo Caetano, Amara Moira e Linn da Quebrada. Quem for à Flup no sábado 12 de novembro verá que somos todos Geni, que a cidade só deixará de apedrejar quando perceber quem poderá salvá-la dos ataques do Zepelim. Ouça mais uma vez a genial canção do Chico caso não tenha entendido o potencial messiânico desse devir.

A ideia dessa mesa é da cineasta Yasmin Thayná, jovem negra cuja carreira acompanhamos com entusiasmo desde quando estudava em uma escola pública de Nova Iguaçu. Ela agora faz companhia a Roberta Estrela Dalva, slam-master do Rio Poetry Slam desde 2014, na Mangueira. A Flup é um dos primeiros festivais literários a reconhecer que o empoderamento das mulheres negras é a maior conquista da década em curso. O Brasil não pode abrir mão dessa conquista.

Complementam essa programação atrações como Conceição Evaristo, Akwaeke Emezi, Pamela Lightsey e, claro, Patrick Chamoiseau. Todos eles são negros não apenas como nossas curadoras, mas como os jovens que reinventaram o cotidiano das universidades brasileiras desde a criação das cotas. Definitivamente, chegou a hora de os festivais literários proporem um diálogo que permita que esse novo leitor se sinta representado.

Também está na hora de reconhecermos o potencial de formação de leitores embutido na poderosa tradição oral da poesia brasileira, presente nas letras do samba, do rap, do cordel e, claro, no criminalizado funk. Sabíamos que seria uma empreitada no nível do insano, mas passamos dois meses discutindo essas narrativas periféricas como gêneros literários dentro de cinco escolas públicas da Cidade de Deus. Você poderá ver o resultado disso na II Gincana Literária, nas manhãs dos dias 9, 10 e 11.

Essa ousadia curatorial também se reflete na parceria que fizemos com o coletivo The Machine to be Another, que não apenas apresenta a Realidade Virtual como uma nova e inventiva narrativa da contemporaneidade. A experiência que estamos chamando de Memória da Pele vai usar a intrigante tecnologia criada pelo coletivo catalão para transpor nosso público até o corpo dos familiares de jovens negros assassinados pela estupidez de nossas polícias. O Brasil precisa colocar-se no lugar dessas famílias e não apenas se envergonhar dessa indústria da morte. Está mais do que na hora de traduzirmos para o português a indignação do Black Lives Matter.

Ecio Salles e Julio Ludemir

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