O QUE O MANGUE TEM A VER COM REENCANTAR O MUNDO?
- Flup Festa Literária
- 12 de mai.
- 3 min de leitura
Atualizado: há 4 dias

Por Isabella Rodrigues
No ponto mais ao norte do Brasil, entre o Amapá e a Guiana Francesa, Brasil e França se tocam. Na fronteira, os manguezais acompanham o rio Oiapoque e os litorais, conectando os dois países por um mesmo ecossistema.
Mais do que uma divisão geográfica, é um território de encontro: biológico, histórico e cultural. Entre a terra e o mar, nasce um espaço onde é preciso ter raiz para respirar. Onde a sobrevivência é arte, adaptação é regra, e a lama — longe de ser sujeira — é terreno fértil.
Nesse solo movediço, entre raízes, lama e maré, resiste um território de criação. É ali que o Atlântico Negro respira, misturando francês, português, línguas afro-diaspóricas, quilombos e florestas alagadas.
Mas o que o mangue tem a ver com reencantar o mundo?
O mangue é um sistema de regeneração. Ocupa menos de 1% da superfície terrestre, mas abriga mais de 10% das espécies marinhas conhecidas. Filtra a água, protege contra desastres, armazena carbono, abriga vida em condições mínimas.
É berçário para peixes, moluscos e caranguejos. É escudo. É abrigo. E, ainda assim, quase metade dos manguezais do planeta foi destruída nas últimas décadas. No Brasil, 25% desapareceram, levando consigo modos de vida inteiros.
O mangue é o lugar onde a vida resiste. O mangue não recua. Ele se espalha. A forma como o mangue se reproduz é também uma metáfora da diáspora.

Os propágulos caem da árvore-mãe, flutuam, se deixam levar pela correnteza até encontrar um ponto de ancoragem. Lá fincam raiz. Lá viram floresta. O mangue é, por natureza, migrante e comunitário. Está em muitos lugares ao mesmo tempo. Assim como o conhecimento. Assim como a música. Assim como os sons que reverberam dos paredões do Pará aos sound systems da Jamaica.
Entre o manguezal e o som, existe um elo de sobrevivência. Um está para a natureza como o outro está para a cultura: amplificadores de vida. Sistemas subterrâneos, quase invisíveis, mas de altíssima potência.
Raiz, no mangue, é uma estrutura de resistência. As raízes se erguem para fora da terra, buscando ar — um feito raro na botânica. São essas raízes que mantêm a árvore em pé mesmo quando tudo ao redor é instável. A literatura negra, periférica, diaspórica também brota assim: aérea, inquieta, insubmissa.
Por isso a Flup finca os pés na lama. Na lama do mangue, que nutre e sustenta. Porque é preciso enraizar para respirar nos tempos das tentativas de asfixia das narrativas negras, periféricas e insurgentes. Por isso a escrevivência pulsa no mangue. A palavra vira semente. E a semente, som.

Quando a Flup propõe reencantar o mundo, não fala de fuga. Fala de reinvenção. De devolver complexidade ao presente. De transformar festa em gesto político. De fazer da lama um ponto de cultura onde a palavra de Conceição Evaristo se deita com os ecos de Glissant, Fanon, Césaire. Onde a tradição não significa passado, significa raiz.
E é justamente dessas raízes que brota o movimento. Do ato de semear nasce a travessia que leva a Flup a cruzar o Atlântico. Em junho, oito escritores brasileiros — entre eles Djamila Ribeiro, Eliana Alves Cruz, Geovani Martins, Daniel Munduruku e Itamar Vieira Junior — embarcam para Saint-Malo, na França, onde representarão o Brasil no Étonnants Voyageurs, um dos festivais literários mais importantes da Europa.
A convite da Temporada Brasil-França 2025, a Flup leva ao mundo a força de uma literatura que reinventa identidades, atravessa fronteiras e afirma, com beleza e contundência, vozes que por tanto tempo foram silenciadas.
Se a lama assusta, é porque talvez ela nos desafia a aceitar que não existe firmeza sem fluidez. E se o mundo precisa ser reencantado, talvez seja hora de tirar os sapatos, entrar no mangue e deixar que as palavras aprendam a respirar por outra via.
Comments