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A décima edição da Flup homenageia uma mulher negra

e um gênero literário: Esperança Garcia e a poesia falada.

Ainda que heterodoxa, esta homenagem nos pareceu a

estratégia mais coerente de dialogarmos com as principais

conquistas de nossa história. Além de nossa trajetória estar

indissoluvelmente ligada ao feminismo negro e ao slam, nossa

existência é tão improvável quanto a carta que colocou uma

mulher escravizada na história do país e tão difícil de explicar

quanto o são os saraus e os slams como a mais inclusiva das

plataformas de formação de leituras e autoras nas periferias.

O fato de termos chegado até aqui, a despeito de tantas crises

e de tantas perseguições, merece ser celebrado.

 

Dedicamos a Esperança Garcia o próximo livro da Flup, que será o 23º de nossa história, que já revelou mais de 400 autores e principalmente autoras. Ele conterá 50 cartas que mulheres negras escreverão para mulheres que não apenas as inspiraram, mas que lhes deram esperança para seguir lutando nos piores momentos de suas vidas. Essas cartas poderão ser escritas para a mãe, uma vizinha, uma professora, uma escritora ou uma ativista. Elas podem ter como destinatária a própria Esperança Garcia, uma mulher escravizada que ousou escrever (e enviar) uma carta para o então governador das Capitanias do Maranhão e do Piauí, no longínquo dia 6 de setembro de 1770.

 

O movimento negro, particularmente o do Piauí, se apropriou com entusiasmo da carta descoberta em 1979 pelo historiador Luiz Mott. E há pelo menos duas razões para fazer do dia seis de setembro o Dia da Consciência Negra daquele estado: a carta de Esperança Garcia é um documento que aponta para a participação das pessoas escravizadas nas lutas abolicionistas e é também a primeira petição escrita no Brasil. Não à toa a professora Sueli Rodrigues liderou uma campanha no sentido de lhe dar o título de primeira advogada brasileira. A OAB do Piauí já a reconheceu como tal. A OAB do Brasil está em vias de.

 

Mas como um festival literário não poderíamos deixar de perceber uma terceira camada na carta de Esperança, talvez a principal razão para que a homenageemos. É que aquelas letras desenhadas com tanto capricho são responsáveis também pelo primeiro texto produzido por uma mulher negra no Brasil, pelo menos do qual se tenha registro até os dias de hoje. Na prática, aquela carta a coloca como uma ancestral de Conceição Evaristo, Cristiane Sobral, Ana Maria Gonçalves e da própria Maria Firmina dos Reis, sua conterrânea e quase contemporânea. Faz parte da nossa missão não apenas fazer essas conexões, mas dar-lhes o devido valor e a devida publicidade.

 

Não à toa vamos pedir para que os participantes do V Slam Colegial façam suas inscrições com um poema para Esperança Garcia. Na verdade, queremos usar o slam como uma plataforma para que os estudantes de ensino médio possam entrar em contato com a história e a cultura dos povos africanos, como o determina a Lei 10.639. Apenas quem não conhece a cena dos saraus e dos slam estranharia a conexão a que nos propusemos fazer entre a juventude negra e a história e a cultura afro-descendente. Nossa experiência com a palavra falada tem nos dado provas de sobra de que essa inclusiva plataforma tem acolhido e acompanhado o amadurecimento da mais numerosa, produtiva e talentosa geração de poetas e performers negros de nossa história. Que o digam Luz Ribeiro, Bell Puã, Pieta Poeta, Kimany, Jéssica Campos, campeãs das cinco últimas edições do Slam Br. Que o diga a própria Roberta Estrela D'Alva, curadora do Rio Poetry Slam.  

 

O ponto de partida do V Slam Colegial será um seminário internacional de poesia falada que organizaremos no último fim de semana de julho, a partir do qual poetas de nossa rede ajudarão estudantes de oito estados do país a produzir poemas a partir de personagens da Enciclopédia Negra. Mas nossa programação dedicada à poesia falada não ficará restrita nem ao seminário de julho nem ao slam colegial. Em novembro, quando realizaremos a Flup propriamente dita, teremos o Slam Abya Yala e o Slam Coalkan. O Abya Yala reunirá os campeões das três Américas e os primeiros colocados garantirão vaga para o Slam Mundial a ser realizado em 2022, em Bruxelas. O Slam Coalkan, concebido e produzido em parceria com o TIFA, reunirá slammers indígenas de diversos países das Américas, criando uma plataforma para que a profecia que batiza este slam se realize, promovendo o encontro do Condor (ave símbolo da América do Sul) com a Águia (ave símbolo da América do Norte).

 

Também está em nosso horizonte reunir poetas lusófonos para debater e performar a partir dos verdadeiros laços que unem o Brasil a Portugal, que foi o tráfico de pessoas escravizadas oriundas do continente africano. Esse debate está sendo construído em parceria com o Centro de Estudos Sociais de Coimbra, criado e coordenado pelo professor Boaventura de Sousa Santos. O ponto de partida  dessa programação será a presença de Emicida em Coimbra a partir de junho, para uma temporada de seis meses.

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